Fé e Medicina

Meu pai é um homem de muita fé. Um cara forte que enfrentou inúmeras dificuldades na vida. Um visionário daqueles que contagiava outros tantos com seus sonhos audaciosos.

Minha mãe, sempre leal companheira, arrastou os filhos, uma vaca para garantir o leite das crianças e as mudas de flores para iniciar o novo jardim logo que ele decidiu abandonar o pouco que tinham no interior do Rio Grande do Sul e se embrenhar pelo mato desbravando o oeste do Paraná.

“Foi um período de bravura”, nas memórias dele; “muito sofrimento”, nas lembranças dela. O fato é que os dois, aos 87 anos, estão aqui. Muitos sinais pelo corpo mas com sete filhos, 14 netos e 11 bisnetos. Segundo meu pai, sobrevivendo graças à fé e às 15 pílulas diárias.

Desde que eram crianças, até a vida adulta com a família que formaram, mantiveram a rotina pouco variável: muito trabalho de segunda a sábado e missa aos domingos. Sou a mais nova da família, mas tenho bem forte, nas referências da minha infância, a vida compartilhada que se vivia naquela comunidade no interior de Toledo (PR).

Eventos para arrecadar recursos para a igreja, construir ou manter a sede social. Ao final de cada culto ou missa, uma lista de convocados era proferida para ajudar nas próximas atividades da comunidade ou também para apoiar uma família que precisasse de auxílio em função de algum membro doente. Muito se fazia para o todo e sem questionamentos. Seu Henrique e Dona Etgele eram muito dedicados e devotos. Ao pai cabia o papel de “dirigente” no roteiro da liturgia. Já à mãe foi destinada a nobre responsabilidade de lavar, passar e engomar a roupa do padre.

Seguiram assim os 49 anos os quais viveram em São Roque da Lopei. Filhos criados, e com quase todos os sacramentos, talvez imaginassem que restariam ali até o final dos seus dias. Mas, seguindo a seu comportamento destemido, não pensaram duas vezes quando os filhos, que os acompanhavam nos negócios da família em Toledo, decidiram deixar o que tinham e iniciar nova vida no desconhecido Norte do Brasil. Assim, aos 73 anos, dessa vez seguindo seus filhos, deixaram o que construiram e foram novamente em busca de uma nova vida em Palmas, no Tocantins.

Distante da comunidade original, Seu Nesello e Dona Etgele mantêm sua fé, acompanhando alguma missas e recebendo, vez que outra, as sempre bem-vindas visitas do padre. Mas, diariamente, ambos fazem suas orações e acompanham as missas da Rede Vida (bênção da tecnologia). Ele, devoto de Santo Antônio, ela fiel à Nossa Senhora da Salete. Sempre que posso acompanho meu pai nas orações diárias a Santo Antônio. Não só casamenteiro, o santo “Tonico” assumiu várias outras pastas no ministério geral deste mundão. São muitas outras atividades milagreiras. Entre elas, ajuda meu pai e a família toda a encontrar coisas e objetos perdidos. Só por essa última tarefa já merecia um templo!

Ontem, antes de rezarmos, meu pai me disse:

— Graças a ele (Santo Antônio) e à Medicina, ainda estou vivo!

O livrinho surrado é o guia da rotina de devoção. Algumas Ave-marias, intercaladas com textos do livrinho, depois toda a ladainha para então o encerramento com mais três Ave-marias finais para Nossa Senhora da Boa Morte.

— Quinze minutos pelo menos — me previne sempre que me candidato a acompanhá-lo.

Antes de iniciarmos o ritual, ainda complementa:

— Não tenho hora pra fazer minha filha, mas faço todo dia. Sabe como eu sei se já rezei ou não? — balanço a cabeça manifestado o meu desconhecimento.

— Coloco ele — apontando para Santo Antônio — na beiradinha ao fundo da mesinha de cabeceira todas as noites antes de dormir. Quando rezo, puxo-o para frente. Se ao deitar ele não estiver na frente da mesinha sei que ainda não rezei.

Fizemos todas as rezas como de costume e, ao final, após as três Ave-marias para Nossa Senhora da Boa Morte, ele me confidencia:

— Me ensinaram que, se rezar três Ave-marias para Nossa Senhora da Boa Morte, o vivente garante que vai pro céu. Eu já tô com meu passaporte garantido! — disse.

Rimos juntos e, quando fui me levantando, proferiu uma frase em italiano que adora repetir, cuja tradução quer dizer:

— Vamos nos encontrar enquanto estivermos vivos, porque depois não sabemos do nosso destino.

— Ué?! — perguntei, com cara de espanto — mas o senhor não disse que está com passaporte garantido pro céu?

— Eu, sim! — respondeu com uma risadinha e uma piscadinha de olho.

Melhor eu seguir rezando as três Ave-marias para a “Senhora da Morte”. Não quero perder, por nada, esse reencontro.

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